segunda-feira, 24 de junho de 2013

No Escuro

Recentemente eu li "No Escuro", primeiro livro da escritora inglesa Elizabeth Hayne. Gostei bastante do livro: a autora utiliza de forma inteligente o recurso de contar, de forma paralela, duas histórias ocorridas em tempos diferentes. Em 2004, a história de Cathy começa num estado de euforia e vai aos poucos desandando até chegar ao fundo do poço; paralelamente, em 2007, Catherine, como agora é conhecida, começa o livro prisioneira dos transtornos psicológicos resultantes do trauma que sofreu na sua "vida anterior" mas, com esforço e determinação, vai aos poucos reconstruindo sua vida, ou melhor, construindo para si uma vida nova em substituição àquela que foi destruída em 2004.

O fato de que o leitor está vendo na Catherine de 2007 o resultado do estrago que o ex-namorado Lee fez na Cathy de 2004 sem dúvida o ajuda a enxergar os sinais de perigo à medida que ela se envolve com ele. O leitor tem uma visão privilegiada porque conhece o futuro, ao contrário de Cathy e de seus amigos. Mais do que isso, porém, o livro mostra como, mesmo depois que Cathy já percebeu que Lee está longe de ser o homem ideal que aparentava ser quando ela o conheceu, seus amigos não entendem como ela pode reclamar de um homem tão bom e tão apaixonado e chegam a censurá-la por não lhe dar o devido valor. Neste ponto, tanto Cathy quanto o leitor enxergam Lee como ele verdadeiramente é, e chega a dar aflição a maneira como seus amigos simplesmente não entendem o que ela está tentando explicar.

Além do fato de que Lee interpreta com maestria e muito charme o papel de namorado dedicado na frente das outras pessoas, contribui muito para o isolamento de Cathy a dificuldade que ela mesma encontra em apontar o que exatamente torna a situação tão ruim quanto ela diz. Isso não acontece porque ela não seja íntima das pessoas com as quais quer conversar ou tenha dificuldade de se expressar.

O problema é que a situação de Cathy não é auto-explicativa. Certas situações dispensam explicações: quando alguém diz "Meu pai morreu", "Minha esposa me deixou", "Estou com câncer", numa única frase já ficou estabelecida a gravidade da situação. Qualquer coisa que a pessoa diga depois disso não é justificativa, é desabafo: não é necessária nenhuma outra evidência de que a situação é grave e a angústia que a pessoa sente é justificada.

Há, por outro lado, algumas situações que não podem ser resumidas em uma única frase. Nem em duas, nem em três. Relacionamentos abusivos não são o único exemplo desse tipo de situação, mas podem ser um bom exemplo. Quando Cathy busca o apoio dos amigos, o que ela tem para apontar como evidência de que o relacionamento com Lee está lhe fazendo mal são coisas que, fora de contexto, não parecem tão terríveis. Não vou nem tentar descrever aqui, porque o resultado seria o mesmo: para fazer o leitor entender o que Cathy passou, a autora gasta quase cem páginas narrando a relação dela com Lee desde o dia em que se conheceram até a primeira agressão física explícita. Elizabeth Hayne traça o caminho percorrido ao longo desses quatro meses e meio da relação passo a passo, gesto a gesto. Isoladamente e fora de contexto, os atos de crueldade que vão se acumulando não causam nem de longe o mesmo impacto que tiveram sobre Cathy, que os vivenciou dentro do contexto de uma relação abusiva.

Assim, para justificar, aos olhos dos amigos, a necessidade premente de terminar com Lee e tirá-lo da sua vida, Cathy precisaria relembrar cada um daqueles momentos que aos poucos foram transformando seu relacionamento em uma masmorra. O ouvinte precisaria ter disponibilidade para sentar com ela e escutá-la narrar cada um dentre as dezenas de gestos de agressão psicológica, descrevendo o tom de voz, o olhar, o clima da situação, até que a soma de tudo demonstrasse que, sim, ela estava em um relacionamento abusivo e precisava de ajuda para sair dele antes que fosse tarde demais. Esse amigo precisaria ainda ser capaz de escutá-la com a mente aberta, sem interrompê-la na altura da quinta história para dizer que "todo relacionamento é assim mesmo, a gente sempre precisa ceder em alguma coisa" e "certamente também há coisas que você faz que não agradam a ele".

Além disso, mesmo para falar com essa pessoa tão disponível e tão compreensiva, não é pouca coisa o fato de que Cathy teria que reviver no tempo de duração de uma única conversa meses de abuso emocional. É uma dose super concentrada de dor que dá para fazer qualquer um desistir antes mesmo de começar, ainda mais quando somada a isso está a pressão de precisar convencer o outro e fazer por merecer o seu "direito" de estar angustiada.

A história de Cathy, como já seria de se esperar, não tem um final feliz. A história de Catherine tem, porque ela conta com pessoas que acreditam nela e a apoiam, mas também pela força que ela encontra em si mesma para juntar os cacos do que se despedaçou e construir algo novo, e da confiança que advém dessa força recém-descoberta. Mesmo com sua percepção da realidade abalada pelo estresse pós-traumático e um transtorno obsessivo compulsivo adquirido na convivência com um homem que controlava cada minuto do seu dia e cada aspecto da sua vida, só quando Catherine consegue (re)conquistar o direito de acreditar em si mesma e na sua capacidade de julgamento, ela consegue superar o que aconteceu.
 
© Joseasreyes | Dreamstime Stock Photos & Stock Free Images
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário