sábado, 2 de abril de 2016

Quem Decide Quais Motivos São Justos?

Eu comecei a trabalhar / estagiar com 19 anos, depois de concluir o curso técnico de eletrônica. Desde então, trabalhei sem parar, como estagiária, técnica em eletrônica, programadora, analista de sistemas, instrutora de informática, digitadora, tradutora, cadista, diagramadora. Já trabalhei com carteira assinada e já peguei trabalhos como free-lancer. E sempre tive claro na minha cabeça que, em uma relação profissional, ninguém está fazendo favor para ninguém. Uma das partes envolvidas precisa do dinheiro, a outra precisa do serviço e, enquanto ambas estiverem satisfeitas com o que estão recebendo e com as condições em que estão recebendo, a relação profissional continua. Se, em algum momento, uma das partes chegar à conclusão de que aquilo que ela está recebendo não compensa a permanência naquela relação profissional, a relação termina. Simples assim.

Nesses quase trinta anos de vida profissional, eu fui demitida formalmente uma vez. Nos trabalhos free-lance que fiz, em alguns casos fui chamada depois para mais trabalhos e em outros, não. Da mesma forma, também já pedi demissão de empresas e já dispensei clientes. E o fiz pelos motivos mais diversos: geralmente por uma oportunidade de ganhar um salário mais alto, trabalhar em condições melhores ou crescer profissionalmente, mas em alguns casos também porque não ia com a cara do chefe, da equipe ou do cliente. Em pelo menos dois casos, como profissional free-lancer eu dispensei trabalhos que estavam dentro da minha competência, a serem realizados em locais razoavelmente próximos da minha casa e por um preço justo, única e exclusivamente porque o cliente, embora boa pessoa, era chato pra caramba. E eu me considero no direito de evitar o convívio com gente chata se assim me aprouver. Nos dois casos, eu já trabalhava para a pessoa há algum tempo, recebia em dia, nunca tinha brigado, mas um dia resolvi que não queria mais. Porque não e pronto. E comuniquei minha decisão, substituindo meus reais motivos por uma mentirinha educada.

Já a Doutora Maria Dolores Bressan foi querer ser honesta e deu no que deu. Ao invés de mentir para a mãe do seu paciente dizendo que precisava diminuir o número de pacientes para se dedicar ao mestrado, à família ou ao treino para a Corrida de São Silvestre, a pediatra preferiu ser sincera com a suplente de vereadora do PT e explicar que, depois da nomeação do Lula para Ministro da Casa Civil, não se sentia mais em condições de ser a pediatra do filho da petista. Parem as máquinas! Como assim? Como uma profissional liberal tem a ousadia de pretender decidir para quem trabalha sem antes submeter seus motivos à aprovação da outra parte? No entendimento da suplente de vereadora e de várias outras pessoas e instituições que se ergueram em ultraje, depois que você começou a trabalhar para alguém, não cabe mais a você decidir se quer ou não continuar trabalhando para essa pessoa. Na cabeça desse povo, você não pode mudar de cliente/empregador simplesmente porque quis: seus motivos têm que ser justos, e quem decide se eles são justos não é você.

Não vem ao caso se os motivos da Doutora Maria Dolores são bons ou não: a questão é justamente que isso não faz a menor diferença. Ela não tinha obrigação nem de explicar por que estava deixando de atender o paciente. Ela trabalha para quem ela quiser, assim como eu, você e todo mundo que não trabalha em regime de escravidão. Ela não é a única médica de uma cidadezinha do interior e agora a pobre mãe vai ter que levar seu filho para outra cidade para as consultas, ela não negou atendimento emergencial para a criança, nem esperou a mãe chegar para a consulta marcada para só então dizer que ela ia ter que remarcar com outro médico. O que não falta em Porto Alegre é pediatra, e a médica simplesmente desmarcou uma consulta e informou que não seriam mais marcadas consultas para aquele paciente. Como é o direito de qualquer pessoa que prefere se afastar de uma situação na qual não se sente bem, quer o resto do mundo concorde ou não que ela tem motivos para não se sentir bem.

"O direito do meu filho foi violado," disse a mãe em entrevista à Folha de São Paulo. Que direito, mulher? Eu, atualmente, quando ouço a palavra "direito" já fico nervosa porque sei que, nove entre dez vezes, a pessoa vai falar bobagem. Ninguém tem o "direito" de ser atendido por um profissional específico. Mais de 400 pediatras credenciados da Unimed em Porto Alegre e você se considera no direito de se levar seu filho para se consultar com a única que não quer olhar na sua cara? E se você resolvesse mudar de pediatra? Por acaso ia ter que dar satisfações a ela, apresentar suas razões para ver se ela aprovava, em respeito ao direito dela à renda proporcionada pelas consultas do seu filho?

Moral da história: nada disso teria acontecido se a Doutora Maria Dolores tivesse mentido quanto às suas razões para dispensar o paciente. É um triste mundo esse em que vivemos, em que a pessoa leva pedrada por falar a verdade.