segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Qualquer Semelhança É Mera Coincidência

Já virou lugar comum dizer que o livro era melhor que o filme. Pela minha experiência, normalmente é, não porque uma arte seja superior à outra, mas porque normalmente o livro vem antes, e uma história que foi escrita visando uma mídia dificilmente será traduzida para outra sem perder nada da intenção original do autor. Não é qualquer ator que consegue, ao representar um homem que receia que a esposa de 50 anos de casados não chegue a tempo ao local onde ele agoniza, transmitir para o público a mensagem de que as suas lágrimas são não de dor física ou de medo de morrer e sim da "dor que jamais se repetiria de morrer sem ela". ("Amor Nos Tempos do Cólera", Gabriel García Márquez). Por outro lado, como causar com palavras o mesmo efeito que a visão da silhueta das bicicletas recortadas contra a lua tem em "E.T. - O Extra-Terrestre"?

Enfim, o fato é que é filmes baseados em livros são muito comuns. Alguns são bons, outros são ruins, muitos são uma decepção para quem já leu o livro. O que eu não consigo entender são alguns filmes que se anunciam como sendo baseados nos livros de mesmo nome mas que não têm praticamente nada em comum com eles. Não é que a história esteja contada de forma superficial ou que faltem as tramas paralelas que enriqueciam o original. Simplesmente é outra história.

ATENÇÃO: Mega spoiler alert para "Eu Sou a Lenda", "Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas" (título do filme no Brasil: "Um Louco Apaixonado") e "Compramos Um Zoológico".

"Eu Sou a Lenda"
Eu vi o filme protagonizado pelo Will Smith quando passou no cinema e gostei muito (e me acabei de chorar quando ele precisou sacrificar a cadela). Quando, anos mais tarde, eu li o livro homônimo de Richard Matteson no qual o filme supostamente se baseia,  o fato de que o filme não tem nada a ver com livro não me fez gostar menos nem de um, nem de outro. Mas o fato é que, no livro, o personagem que o Will Smith interpreta no filme não é militar, não é médico, não tem filha, não descobre a cura para a doença, não encontra mais nenhum sobrevivente, não tem uma cachorra (ele chega a encontrar um cachorro abandonado que ele tenta acolher, mas que morre de ferimentos e de fraqueza poucos dias depois). A única "pessoa" que ele encontra é, na verdade, uma vampira enviada para espioná-lo e entregá-lo aos outros vampiros. É, embora exista uma doença que está transformando todas as pessoas naquelas coisas bizarras, existem também vampiros "puro-sangue" sem nenhuma relação com a doença que estão aproveitando o apocalipse para herdar a terra. Para eles, o personagem do Will Smith é que é o monstro que sai de noite para perseguir e matar o povo deles. A frase "Eu sou a lenda" é a conclusão a que ele chega depois de ser capturado pelos vampiros, enquanto espera pela sua execução pública. Os papéis se inverteram e, na visão dos vampiros, ele é o monstro que aterroriza o povoado.

"Um Louco Apaixonado" (baseado no livro "Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas")
Quando eu fui assistir "Um Louco Apaixonado", tinha duas opções de filme começando mais ou menos no mesmo horário: um era "Ele Não Está Tão a Fim de Você" e outro era "Um Louco Apaixonado". Eu não escolhi "Ele Não Está Tão a Fim de Você" especificamente porque eu NÃO estava a fim de assistir uma comédia romântica. Apesar do título em português, "Um Louco Apaixonado" era (em teoria) baseado no livro "Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas", do jornalista inglês Toby Young. O título original do filme é o mesmo do livro ("How to Lose Friends & Alienate People"), e o livro não é uma comédia romântica: é uma crítica feroz à sociedade americana e ao culto às celebridades. O Toby Young não fez sucesso em Nova York: ele foi demitido da Vanity Fair um ano depois de chegar lá e durante muito tempo continuou usando um passe de imprensa expirado da Vanity Fair para entrar de penetra nas festas. Ele não se apaixonou por uma jornalista americana que trabalhava na mesma revista que ele: ele namorou uma advogada inglesa que estava morando nos Estados Unidos, foi largado por ela e eles só voltaram (e mais tarde se casaram) anos depois, e, ao contrário do filme, o livro não gira em torno disso. Ele deu muitos vexames em Nova York (contados em detalhes por ele mesmo no livro), mas não se engalfinhou com uma atriz indicada ao Oscar ao vivo na cerimônia de entrega para tomar de volta o anel da mãe dele. E o que me deixa perplexa é que o livro foi escrito pelo Toby Young: é um relato em primeira pessoa da experiência dele nos Estados Unidos. É a vida dele que ele deixou transformarem num filme em que a esposa e mãe dos quatro filhos dele não existe e ele deu de presente uma herança de família numa tentativa de convencer uma atriz qualquer a dormir com ele.

"Compramos Um Zoológico"
Outra história real narrada em primeira pessoa pelo protagonista. O filme protagonizado pelo Matt Damon não foi produzido pela Disney, mas poderia ter sido. Tem todos os elementos de um típico "filme para a família": o viúvo que precisa superar o luto e reconstruir sua vida, o adolescente que descobre o amor, o pai e o filho adolescente que superam seus conflitos e se reaproximam, o vilão tentando impedir que eles realizem seu sonho de reabrir o zoológico. Já o livro de mesmo nome escrito por Benjamin Mee (o pai em questão) é um livro excelente, mas para adultos. Fala não só dos animais (claro que fala dos animais, é um livro sobre um zoológico!) mas também das negociações com bancos, das obras para recuperar as instalações, da contratação dos novos funcionários e da adaptação dos antigos... Fala da doença da esposa, Katherine, que só morreu um ano depois de eles terem se mudado para o zoológico, e da participação do resto da família no empreendimento, especialmente da mãe de Benjamin e do seu irmão Duncan, que também se mudaram para o zoológico e se empenharam na sua restauração tanto quanto Benjamin. No fim do livro, o próprio Benjamin comenta, a respeito de um documentário em capítulos que foi filmado no zoológico mostrando o trabalho de restauração: "Preocupava-me um pouco o fato de a série de TV ter se chamado Ben's Zoo, em grande medida porque este não foi, de modo nenhum, o esforço de uma única pessoa." No entanto, a participação dessas e de muitas outras pessoas é diminuída ou simplesmente omitida no filme. Eu comprei o livro depois que o filme já tinha sido lançado e, como costuma acontecer nesses casos, foi lançada uma nova edição do livro com a capa original substituída por uma foto promocional do filme. E é muito esquisito, porque a maioria dessas pessoas que está na foto da capa desse livro autobiográfico não existe! Não existe Dylan, o filho adolescente: existe um filho chamado Milo, que tinha cerca de 6 anos na época em que o zoológico foi comprado e obviamente não se apaixonou pela personagem da Elle Fanning, que também nunca existiu. Não existe nenhum adolescente no livro. A filha não se chama Rosie, e sim Ella, e tinha na mesma época cerca de 4 anos, uns 3 anos a menos do que a personagem do filme.  A cena lacrimosa em que o Benjamin finalmente concorda em colocar o tigre Spar para dormir nunca aconteceu: em todo o período desde a compra do zoológico até a obtenção da licença e reabertura para o público, os únicos animais sacrificados foram algumas aves. A cena da fuga das cobras não aconteceu, mas um jaguar fugiu e foi recapturado na área dos tigres, e uma tigresa causou um tumulto ao acordar da anestesia antes da hora fora da sua jaula.

O que me impressiona nesses três casos é que os roteiristas poderiam perfeitamente ter mudado o título do filme e o nome dos personagens e feito o seu filme em paz sem precisar pagar direitos autorais para o autor do livro. Para que se dar ao trabalhar de acrescentar "Baseado no livro homônimo de Fulano de Tal" ao currículo do seu filme se a sua intenção é escrever a sua própria história, com os seus próprios personagens? Deve haver um raciocínio muito genial por trás disso que escapa a mim, que não sou do ramo.

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