sexta-feira, 27 de junho de 2014

Malévola

Assisti "Malévola" praticamente no dia da estréia. Antes de contar o que achei, vou colocar um imenso SPOILER ALERT aqui, pois pretendo comentar em detalhes várias cenas do filme.

Repetindo para quem não prestou atenção na primeira vez: SPOILER!

Não digo que não tenha gostado do filme, mas não achei isso tudo, não. Tanto me falaram de um filme ousado, maravilhoso e inovador que eu acabei esperando mesmo um filme ousado, maravilhoso e inovador. E esqueci que estava indo assistir um filme da Disney. Não me entendam mal: eu adoro filmes da Disney. Mas, com toda essa propaganda, esperava mais de "Malévola".

Por onde começar? Pelo nome, claro: Malévola. Maleficent, no original. Um dos temas principais do filme é o fato de que Malévola não era uma bruxa má, e sim uma fada boa que se tornou má por motivos que o filme se propõe a explicar. Então por que, meu Deus, a menina (o filme começa quando Malévola ainda é criança) se chama Malévola? Quem dá esse nome para uma criança? Cheguei a olhar no dicionário quando cheguei em casa para ter certeza, mas não há outro significado para "maleficent". E o mais curioso é que nem seria um problema tão difícil assim de resolver: bastaria dar à menina outro nome e fazer com que ela passasse a ser conhecida como Malévola depois de se corromper. É um recurso muito comum nas histórias de origem de vilões: o Doutor Octopus já foi o Dr. Otto Gunther Octavius, o Duas Caras se chamava Harvey Dent, Darth Vader era Anakin Skywalker. Mas Malévola, coitada, sempre foi Malévola: aparentemente nem os pais botavam muita fé nessa criança.

Ironicamente, a mesma autora que não se deu ao trabalho de inventar um nome menos agourento para Malévola trocou, sem motivo aparente, o nome das três fadas Flora, Fauna e Merryweather (Primavera, na versão brasileira) para Knotgrass, Thistlewit e Flitte. Knotgrass, coitada, é uma planta que, em português é chamada de erva-de-bicho. Quanto a Thistlewit e Flitte, se alguém souber o que significam, pode postar nos comentários, porque eu não consegui descobrir. O nome, por sinal, não foi a única coisa alterada nas três fadas, mas vou falar disso mais adiante.

O filme começa com uma narradora em off apresentando dois reinos vizinhos (o dos homens e o das criaturas mágicas) que chegaram, após anos de guerra, a uma trégua que se baseia no fato de que os habitantes de um reino nunca entram nos domínios do outro. Até que Malévola do reino das fadas conhece Estêvão do reino dos homens, ficam amigos, blablablá, primeiro amor, e vem a cena do "beijo do amor verdadeiro" (expressão usada por Estêvão e que vai ser significativa mais tarde na história). Gostei do detalhe de ele estar com os pés plantados no chão durante esse beijo enquanto ela, com suas asas de fada, paira a alguns centímetros do solo. Pode ser viagem da minha parte, mas me pareceu uma referência à expressão "sweep her off her feet" que é meio difícil de traduzir, mas literalmente seria algo como "tirá-la do chão", no sentido de conquistá-la, deixando-a deslumbrada, andando nas nuvens.

A narradora conta então que com o tempo os dois se afastaram porque Estêvão estava mais preocupado com suas ambições e sonhos de grandeza e corta para Malévola já adulta na pele de Angelina Jolie.

Parênteses rápido aqui para dizer que a Angelina Jolie está, na minha opinião, deslumbrante e poderosa como Malévola e o filme poderia ter sido muito melhor se tivessem explorado mais o lado malévolo da personagem. Fecha parênteses, voltemos à história.

Um belo dia, o rei Henry resolve que chega de trégua: vai invadir o reino das criaturas mágicas. Para isso, ele escolhe um dia que aparentemente é fim de semana prolongado ou dia de jogo da Copa por lá, porque a única criatura mágica que está lá para receber o exército invasor é Malévola, que, sei lá, era quem estava de plantão nesse dia? E, claro os Ents o povo das árvores, mas eles meio que não tinham escolha, né?

Adorei a hora em que o rei Henry, irritado porque Malévola não o reconhece como seu soberano, diz para o soldado mais próximo: "Traga-me a cabeça dela." Majestade, com todo o respeito: a mulher acabou de chegar voando com um par de asas de mais de 3 metros de envergadura. Mesmo que ela não tivesse como deter o seu exército, com duas batidas de asa ela fica fora do alcance de qualquer um dos seus soldados. Para de falar bobagem e se concentra em objetivos viáveis.

Enfim, claro que o exército do rei leva uma surra e voltam todos para casa com o rabo entre as pernas. O rei, que já não é nenhum garoto, promete, no seu leito de morte, a mão da princesa e a coroa para aquele que o vingar, matando Malévola.

Muito tem sido dito sobre o simbolismo de Estêvão drogando Malévola para lhe cortar as asas, que ele apresentou ao rei Henry como prova de que o tinha vingado. Francamente, não enxerguei o ato de cortar as asas como uma alegoria do estupro, como muita gente tem feito. Entendo o argumento de que ele se aproximou dela com intenções supostamente românticas e depois a drogou e roubou dela uma coisa tão pessoal e íntima, mas o ponto básico que diferencia, para mim, a traição de Estêvão de um típico Boa-Noite Cinderela é o fato de que a sua intenção original era matar Malévola, pura e simplesmente: ele chegou a erguer a faca sobre ela quando estava desacordada e, só quando não conseguiu matá-la, optou pelo roubo das asas como uma solução alternativa.

Polêmicas à parte, a cena em que Malévola acorda sozinha e descobre que foi traída e mutilada é interpretada de forma magistral pela Angelina Jolie, assim como a cena em que ela descobre que Estêvão fez o que fez com ela para satisfazer a sua ambição de se tornar rei. Na minha opinião, o trecho que vai da traição de Estêvão até o batizado de Aurora deu à plateia um vislumbre do filme que "Malévola" poderia ter sido. Alguma coisa se rompeu dentro de Malévola com a traição de Estêvão e, em um filme mais denso e mais corajoso, teria sido necessário mais do que um bebê rosado e sorridente para reparar isso, e o caminho de volta teria sido mais longo e mais doloroso.

Mas corrupção e redenção são temas pesados e que merecem posts próprios, se e quando eu tiver a energia necessária para me aventurar por essa seara. Por ora, voltemos ao filme.

O tempo passa e o corvo Diaval traz para Malévola a notícia de que a princesa Aurora nasceu, e assim chegamos à clássica cena do batizado.

Abre parênteses novamente para um anúncio de utilidade pública. Meninas, nada de bom advém de se ficar acompanhando a vida do ex, seja via corvo falante ou Facebook. Fica a dica. Fecha parênteses.

A cena do batizado e os eventos subsequentes foram, de forma geral, iguais ao desenho animado, com algumas diferenças interessantes e outras que me incomodaram porque não acrescentaram nada à história e só serviram para deixar furos no enredo.

A primeira diferença é o fato de que, no desenho animado, as três fadas boas foram convidadas para o batizado, enquanto que, no filme, elas chegam tão de penetra quanto Malévola (e com menos motivo que ela). Mesmo sem contar a traição de Estêvão, o último contato entre os dois reinos foi a tentativa mal-sucedida de invasão comandada pelo rei Henry. Tudo bem que, nesta versão, as três fadas são umas tapadas, mas o que as fez pensar que elas seriam bem-vindas na cerimônia? Aliás, como é que as três conseguiram atravessar o palácio até chegar tão perto do berço da herdeira recém-nascida sem nenhum guarda fazer nada?

"Problema resolvido, Majestade."

Mas, tudo bem: elas chegam até o bebê e a rainha convence o rei a aceitar o gesto de boa-vontade das três. A primeira fada dá a ela o dom da beleza, como no desenho, mas a segunda, ao invés do dom da música, dá o dom da alegria (pelo menos eu acho que era da alegria: não prestei muita atenção nessa parte). E essa outra alteração foi feita porque... sei lá. Será que a Elle Fanning é desafinada?

Enfim, antes que a terceira fada tenha a chance de dar o seu presente, chega Malévola, e essa, sim, entra com uma cara e uma pose que dá pra entender porque ninguém a parou na porta e pediu para ver o convite. A cena em que ela amaldiçoa a princesa é tensa, especialmente porque, mesmo sem palavras, fica claro na troca de olhares entre ela e Estêvão que ambos sabem que a princesa Aurora está pagando o preço da traição dele. E, por falar em olhares, gostei também da sutil troca de olhares entre Estêvão e os nobres do reino na hora em que Malévola o obriga a se ajoelhar e implorar pela vida da filha. Estêvão nasceu plebeu, filho de fazendeiros, e só ascendeu ao trono pelo casamento, graças a uma promessa feita pelo antigo rei aos quarenta e quatro minutos do segundo tempo. Dá pra imaginar o quão precário era o equilíbrio daquela coroa recém colocada sobre a sua cabeça e o quão desmoralizante deve ter sido para ele ser visto pela corte toda se ajoelhando aos pés de Malévola.

Finalmente, houve uma mudança que (para mim) foi boa e ruim ao mesmo tempo. Por um lado, foi bastante interessante o fato de que não foi a terceira fada e sim Malévola que fez na maldição a alteração que poupou a vida da princesa, dizendo que, ao invés de morrer, ela cairia em um sono profundo do qual só poderia ser despertada pelo "beijo do amor verdadeiro" (vide beijo que Estêvão deu em Malévola no início do filme: não falei que essa expressão seria significativa mais tarde)? Além de eu gostar muito desse recurso de referências cruzadas ao longo da história, o sorriso de Malévola para Estêvão quando ela disse isso foi demais. Por outro lado, o presente da terceira fada ficou no vácuo. Tudo bem que não tinha mais clima pra presente depois que Malévola foi embora, mas por que não deixar a terceira fada dar seu presente antes de Malévola chegar? No desenho animado, o motivo de Malévola chegar antes de Primavera dar o seu presente é permitir que ela use seu presente para amenizar a maldição de morte para sono. No filme, só serviu pra me deixar com uma sensação de coisa inacabada.

Sei que esse é só um pequeno detalhe, mas fazer com que a terceira fada desse um presente mais prático para Aurora, algo que demonstrasse o poder das fadas e tivesse alguma utilidade contra a maldição de Malévola teria dado um fiapo de credibilidade à decisão de confiar Aurora aos cuidados das três quase desconhecidas. No desenho, a ideia faz sentido porque as três são figuras conhecidas e queridas no reino, mas no filme elas são três habitantes do mesmo reino de onde veio Malévola, que apareceram na festa sem terem sido convidadas e não deram mostras de nenhuma habilidade, mágica ou mundana, que as recomendasse para cuidar da única filha e herdeira recém-nascida do rei.

Mas é o que acontece, e lá se vão os Três Patetas as três fadas com a criança para uma cabana no meio da floresta e, como no desenho, elas usam sua magia para ficarem parecidas com habitantes do reino humano e guardam suas varinhas de condão de modo a se passar por três camponesas criando uma criança plebéia. Ao contrário do desenho, no entanto, em que Aurora deve retornar ao palácio e ser apresentada à corte no dia do seu aniversário de 16 anos, no filme as fadas devem levá-la de volta no dia seguinte ao aniversário, o que, convenhamos, faz muito mais sentido. Nunca entendi a lógica de manter a princesa escondida durante 16 anos para trazê-la de volta com grande alarde justamente no dia em que a maldição está prevista para se cumprir. É meio como fazer todo o treinamento vestindo colete à prova de balas e tirá-lo justamente na hora de ir para a primeira missão em campo.

"Vocês têm certeza de que isso é seguro?" "Claro que é! Agora coloca este capacete que nós mandamos fazer especialmente pra você!"
(amypalm @ freeimages)


No fim das contas, porém, de nada adianta toda essa astúcia, porque Malévola descobre o plano, segue as três até a cabana e rouba o bebê. Fim.

Na verdade, não: a maldição foi que a menina só espetaria o dedo no dia do seu décimo-sexto aniversário. Assim, Malévola deixa o corvo vigiando a cabana, vai cuidar da sua vida e volta no dia do aniversário de Aurora com uma roca embrulhada pra presente. Fim.

Ou melhor, também não foi assim: chocada com a incompetência e negligência das três fadas, que passam o tempo todo girando como baratas tontas e se estapeando em cenas dignas de comédias pastelão, Malévola mantém a cara de malvada mas assume o papel de quarta guardiã da princesa Aurora, alimentando-a, mantendo-a em segurança e basicamente se certificando de que ela viva bem e feliz até o cumprimento da maldição.

Sério, é isso mesmo.

E assim, o tempo passa, Aurora cresce, Malévola se afeiçoa a ela e o tal filme ousado, maravilhoso e inovador segue o caminho d'A Bela e a Fera. E de Lilo & Stitch. E d'A Era do Gelo. E de todos os outros 3.946.327 filmes em que um vilão foi redimido pela força do amor.

Eventualmente, Aurora conhece Malévola e conclui que ela é a sua fada madrinha, porque o que mais poderia ser aquela mulher toda de preto, com a boca escarlate, olhos amarelos e chifres enormes e pontiagudos? Isso para não falar daquelas maçãs do rosto que podem ser classificadas como arma branca.

Enquanto Malévola e Aurora se divertem com passeios e piqueniques no reino das criaturas mágicas, no reino dos homens Estêvão enlouquece lentamente, obcecado por Malévola e pela maldição. A rainha, coitada, já tendo dito as suas duas ou três falas na cena do batizado, morre abandonada e fora de cena.

Quando o aniversário de dezesseis anos de Aurora se aproxima, Malévola tenta reverter a maldição, mas descobre quem nem mesmo ela é poderosa o bastante para fazê-lo. E, tudo bem, essa foi uma referência à cena do batizado, na qual ela declarou que nenhum poder seria suficiente para retirar a maldição, mas não fica meio esquisito isso? A pessoa lança um feitiço e precisa especificar se ele vai poder ser desfeito por (a) qualquer um, (b) somente algumas pessoas especificadas ou (c) ninguém? O que aconteceria se ela tivesse só lançado a maldição sem acrescentar nada? Por default, o feitiço poderia ser desfeito por qualquer um? Ou por ninguém? Ou só por quem tivesse a senha de administrador do sistema?

Desculpa, gente. Piada infame de profissional de TI: não resisti!

Não podendo reverter a maldição, Malévola parte para o plano B: se Aurora for morar com ela no reino das criaturas mágicas, ficará a salvo, porque lá não tem roca de fiar, já que as roupas das criaturas mágicas são costuradas com, sei lá, magia, sorrisos e pensamento positivo? O fato é que Aurora volta para casa para informar suas "tias" que está de mudança para a casa da nova amiguinha.

Abre parênteses novamente, desta vez para os pais e mães na plateia: conversem com seus filhos quando chegarem em casa e certifiquem-se de que eles entendem que adultos misteriosos que seguem criancinhas e adolescentes sem o conhecimento dos pais e responsáveis só são pessoas legais nos filmes da Disney. Fecha parênteses.

Neste ponto do roteiro, a Linda Woolverton (autora do roteiro) devia estar atrasada para o prazo de entrega e resolveu terceirizar. Distribuiu as cenas que faltavam para várias pessoas diferentes escreverem, eles não se falaram pra combinar a linha do tempo e deu no que deu.

Na cena em que Malévola e Aurora combinam que ela só vai ali avisar às tias e depois vai se mudar para o reino das criaturas mágicas com Malévola, é a véspera do aniversário de Aurora. No caminho para casa, Aurora encontra o príncipe Philip, que se perdeu a caminho para o castelo de Estêvão, e, depois de alguns sorrisos e olhares, ela aponta a direção correta para ele e os dois combinam que ele vai passar novamente por ali para encontrá-la novamente. Esta cena foi escrita pelo Jim, de Los Angeles.

A cena seguinte, em que Aurora chega em casa e fala com as tias, foi escrita pelo Michael, de Long Beach, e como o Jim não avisou pra ele que Aurora estava indo falar com as tias na véspera do aniversário, a garota deve ter se perdido pela floresta porque só chegou em casa no dia seguinte, dia do aniversário. Pra piorar as coisas, as fadas já estão de saco cheio de viver sem magia e resolvem que vão devolver Aurora no dia certo do aniversário, ao invés de esperar passar o dia da maldição como combinado. Ou seja, mesmo que Malévola já não tivesse encontrado a menina há muito tempo, de qualquer modo ia tudo pro vinagre agora porque as fadas não aguentam esperar mais um dia.

Quando as fadas contam toda a verdade para Aurora (inclusive a parte em que a "fada-madrinha" era na verdade a Fera da Penha) a garota surta, monta no cavalo mais próximo e parte para o castelo, chegando lá ao pôr do sol.

E aí, a Patricia, de San Diego, que não foi avisada que o encontro com o príncipe Philip, a conversa com as fadas e a partida para o castelo aconteceram em um único dia, escreveu a cena seguinte em que Philip já está de volta na floresta em tempo de ser enfeitiçado e carregado por Malévola para o castelo atrás de Aurora. Chegando lá, como o plano A e o plano B para salvar Aurora já foram pro saco, Malévola precisa improvisar, e não lhe ocorre ideia melhor do que largar o coitado do Philip desacordado em um dos corredores do castelo e torcer pra ele encontrar o caminho para o quarto da princesa sozinho e ser o tipo de cara que beija uma menina que acabou de conhecer se a encontra inconsciente e sozinha.

"Mas, seu guarda, era o beijo do amor verdadeiro, juro!"
(mzacha @ freeimages)

Enfim, a essa altura Aurora já espetou o dedo e está desacordada no quarto enquando Estêvão está em algum outro lugar do castelo se preparando para a guerra, já que ele acredita que Malévola virá atrás dele depois de acabar com Aurora. As fadas, depois de colocar Aurora na cama, encontram Philip, ainda desorientado, no corredor, e o arrastam pra dentro do quarto para beijar a menina. E, aí, como esta cena foi escrita pelo David, de Oakland, que nem conhece a Patríca, o Jim e o Michael e não leu o resto do roteiro, o príncipe Philip fica muito feliz de saber que está no castelo do rei Estêvão, porque era pra lá mesmo que ele estava indo. Peraí, mas a Malévola não encontrou o Philip na floresta justamente quando ele estava voltando do castelo para encontrar com a Aurora hoje... ontem... ah, sei lá quando! Pô, Linda, da próxima vez cria um grupo no WhatsApp pro pessoal se comunicar e combinar essas coisas com antecedência!

Philip, em uma demonstração de cautela rara em contos de fadas, hesita em beijar Aurora, ponderando que os dois acabaram de se conhecer, mas cede diante da insistência das fadas e... nada acontece. Aurora nem pisca. As fadas saem então à procura de outro príncipe (a maldição fala de amor verdadeiro, e não de príncipe, mas já ficou claro à essa altura do campeonato que essas fadas são umas antas, então nem vou me dar ao trabalho de questionar isso) e o príncipe Philip vai... não sei pra onde. Pros bastidores do set de filmagem, talvez, tomar um café. Ele só vai ter mais uma cena no fim do filme, mesmo.

Entra Malévola, arrasada por ver que todos os seus esforços para salvar Aurora foram em vão (e, espero eu, tendo aprendido a não lançar mais pragas em bebês recém-nascidos para se vingar dos pais). O seu pedido de perdão e despedida para uma Aurora ainda desacordada são muito bonitos e eu admito que fiquei comovida e gostei do fato de que, no fim, é o seu beijo de amor maternal que desperta a menina, mas achei que o comentário de Diaval ("Não há amor mais verdadeiro") acabou sendo desnecessário e redundante e quebrou um pouco o clima. Não gosto quando uma cena consegue transmitir a ideia de uma forma sutil e o autor ainda assim se sente na obrigação de fazer um personagem "explicar" a cena para a plateia como se a gente não fosse entender de outro jeito. É que nem claque no fim da piada: dá vontade de dizer "tá bom, já entendi!".

Outra coisa: achei legal o amor verdadeiro não ter que ser o amor romântico (do príncipe que ela tinha acabado de conhecer e trocado meia dúzia de palavras), mas, convenhamos, Frozen tinha acabado de fazer a mesma coisa. E antes disso, Valente. Sou super a favor de mostrar que o amor romântico não é tudo na vida, especialmente quando o público são meninas pequenas e pré-adolescentes, mas não é como se Malévola tenha sido um pioneiro nesse tema.

Bom, Aurora abre os olhos, sorri e chama Malévola de fada-madrinha, por que, afinal de contas, não dá pra continuar chateada com alguém só porque a pessoa lançou uma maldição para que você morresse aos 16 anos, não quando essa mesma pessoa arrisca tudo indo atrás de você no castelo pra tentar te salvar. Quer dizer, não exatamente: Aurora não sabe que é perigoso para Malévola estar ali. Ah, mas teve aquele pedido de perdão tão bonito e tão sincero, né? Na verdade, não: Aurora estava desacordada e não escutou nada. Então foi... vejamos... ah, já sei: não dá pra continuar chateada com alguém quando você acorda e dá com essa pessoa de pé ao lado da sua cama, te observando dormir. Certo. Bom, vai ver Aurora leu toda a série Crepúsculo e achou lindo.

Mais um parênteses para os pais: por favor, conversem com suas filhas sobre esse negócio de gente que invade o seu quarto pra ficar te olhando dormir. Fecha parênteses.

Tudo perdoado e esquecido, as duas se preparam para partir de volta para a floresta sem deixar nem um bilhetinho para o pai, as fadas, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, quando são emboscadas em um salão que deve ser o único caminho para a saída do castelo porque, caso contrário, como Estêvão sabia que era para esperar ali?

E aí, Malévola, que consegue transformar corvos em homens e homens em corvos, e em lobos e em dragões, transforma Estêvão e todos os seus soldados em algum bicho bem inofensivo.

"Guardas! Detenham-na!"
By VikiPicture (Own work) [CC-BY-SA-3.0], via Wikimedia Commons

Ha ha ha, claro que não! Ela é cercada e capturada e só consegue escapar porque Aurora encontra suas asas, que Estêvão guardou em um cômodo convenientemente destrancado. Aurora solta as asas da caixa onde estavam presas e elas saem voando e... Como assim, como é que elas saem voando? Você ainda está com o espírito crítico ligado a essa altura do filme? Sei lá como elas saem voando, elas saem e pronto! As asas encontram Malévola e... e... não acho que exista um verbo na língua portuguesa para descrever o ato de asas que foram cortadas há quase vinte anos encostarem-se nas espáduas da sua antiga dona e de repente ela passar a ter asas de novo, como se nunca tivessem sido cortadas.

E, como asas aparentemente são mais úteis em batalhas em ambientes fechados do que magia, Malévola dá cabo do exército de Estêvão e luta com ele até aquela famosa cena d'A Bela e a Fera em que a Fera encurrala Gastão no alto da torre, mas antes de jogá-lo lá de cima lembra que agora é uma pessoa mudada pelo poder do amor, decide começar vida nova sem sangue nas mãos e o solta. E, como vilão que é vilão não sabe parar enquanto está ganhando, Estêvão / Gastão tenta atacar Malévola / a Fera enquanto ela está de costas para ele e acaba caindo do alto da torre e se espatifando lá embaixo sem que o protagonista do filme suje as mãos.

O filme termina com Malévola apresentando Aurora ao povo do reino mágico como sua nova rainha, unindo assim os dois reinos. E uma nova era de paz e harmonia se inicia, já que unir sob o mesmo governo dois povos vizinhos que se antagonizam e temem mutuamente é um plano excelente que jamais deu errado em toda a história da humanidade.

A última fala é da narradora em off, que diz que, se você escutou outra versão dos fatos, não acredite nela, pois a que você acabou de ver é a verdadeira. "Como eu sei disso?" ela acrescenta. "Porque eu sou aquela que foi chamada de 'Bela Adormecida'". Amiga, você ficou adormecida por uns quinze minutos, se tanto. Pelo seu raciocínio, qualquer mulher bonita que pega o ônibus da linha 110 e dorme na Ponte Rio-Niterói deveria ser chamada de Bela Adormecida.