Há alguns dias atrás, uma amiga muito querida postou no Facebook uma foto dela e da sua equipe de trabalho. Acompanhando a foto, tirada às nove horas da manhã, um texto explicando que ela estava trabalhando há 24 horas ininterruptas e que já estava acordada há 30 horas, tendo dormido apenas duas horas na "noite" (dá pra chamar de noite?) anterior. O resto da equipe, aparentemente, estava no mesmo ritmo. Ainda assim, estavam todos sorridentes na foto, marcada com o hashtag #sóosfortes. E os comentários seguiam no mesmo tom: percebia-se o orgulho de ser "forte", "caveira", "guerreiro", e a solidariedade dos amigos que já tinham passado por perrengues semelhantes.
Longe de mim desmerecer a força de vontade e o espírito de luta de quem vira a noite trabalhando no projeto, com ou sem pizza, pausa pra foto no Facebook e apoio do marido/esposa que está em casa dando a janta e o banho das crianças. Só com muita garra mesmo. O que me preocupa é essa tendência de achar que isso é normal. Que faz parte. Os fortes aguentam o tranco; os fracos ficam de mimimi e querem ir para a casa no fim do expediente.
É a terrível confusão que se faz do comum com o normal: comum é uma coisa e normal é outra, e é fundamental não se esquecer disso. Se acontece com frequência, é comum; nem por isso, no entanto, se torna normal. Tratar como normal uma falha grotesca no processo como a que permite que projetos atrasem a ponto de a equipe precisar regularmente trabalhar além do horário, seja no escritório ou em casa, é sancionar a conduta irresponsável de quem assume prazos sem avaliar se é capaz de cumpri-los ou, pior, sabendo perfeitamente bem que não é capaz de cumpri-los sem esse tipo de sacrifício. De quem muda a especificação no meio do caminho e, "inocentemente", acha que isso não afeta o prazo final. E de quem permite que isso aconteça.
E assim a hora extra, que deveria ser a exceção, a solução extraordinária para o contratempo imprevisto, se torna a norma, o comprometimento, o "vestir a camisa". Errados são aqueles pais e mães que teimam em buscar os filhos na escola, maridos e esposas que insistem em jantar juntos, estudantes que se recusam a matar aula, aquela gente egoísta que enche suas noites e seus fins de semana com todo o tipo de atividade não ligada ao trabalho: academia, cinema, teatro, cabeleireiro, supermercado, reunião de condomínio, praia, viagem, futebol.
Quando uma pessoa está em uma situação que não lhe permite fazer pé firme e dizer: "Eu avisei desde o início que não tinha como ficar pronto em três meses; ninguém mandou você se comprometer com o cliente", encarar a situação como um desafio e não como uma atitude desrespeitosa da parte de quem está cobrando o cumprimento do prazo impossível é uma forma de defesa até bastante compreensível. Afinal, se é inevitável, não é melhor encarar a situação de forma positiva? O problema é que esse tipo de pensamento está perigosamente próximo do pensamento da mulher cujo marido não é violento e perigoso, "ele é só muito passional". E essa mulher, como diz uma outra amiga minha, de forma um pouco cínica mas nem por isso menos realista, está a um passo de tornar-se estatística da Lei Maria da Penha.
É muito saudável que os membros da equipe façam piada, riam da própria desgraça e apoiem-se uns aos outros quando estão passando por uma situação difícil. Mas deixa de ser saudável se eles se convencem de que a vida é isso. Que "nessa área em que trabalhamos" é assim mesmo. É "assim mesmo" médico dar plantão. É "assim mesmo" militar ficar de serviço. Mas não é "assim mesmo" nenhum profissional, de qualquer área, trabalhar fora do horário contratado, sem as ferramentas adequadas ou forçado a assumir responsabilidades que não são suas. Por mais comum que seja, não é normal.
Em duas entrevistas de emprego, eu escutei a pergunta "Você tem disponibilidade para fazer hora extra?". Nas duas dei a mesma resposta. Tenho disponibilidade, sim, para fazer hora extra se acontecer algum imprevisto e o prazo for crítico. Se alguém da equipe ficar doente, se o servidor ficar fora do ar na véspera da entrega, se nós, enquanto equipe, subestimarmos a complexidade do projeto e o esforço necessário, conte comigo para ficar até a hora que precisar ou para vir no fim de semana. Mas, se o prazo estimado for x e alguém entregar um cronograma de x - 1 para ganhar a concorrência ou fazer média com a chefia, já contando com a minha hora extra, pode esquecer. Em um dos casos fiquei com o emprego; no outro, não. Se pudesse voltar no tempo, minha resposta permaneceria a mesma.
Encerro este post com uma fábula de Monteiro Lobato que precede aquela historinha de porco (comprometimento) x galinha (envolvimento) que o pessoal adora contar nos workshops motivacionais.
As Razões do Porco
Lá ia para o mercado a carroça dum sitiante. Dentro, três animais: uma cabra, um carneiro e um leitão. Cabra e carneiro seguiam em silêncio, muito sossegados da vida. Já o porquinho, não. Inquieto, a suspirar, volta e meia espiava pelas frestas, cheio de apreensões. E quando avistou o mercado não se conteve: abriu a boca e berrou como se estivessem a sangrá-lo no coração.
— Para que isso? — disse a cabra. — Também eu vou para a feira e no entanto a ninguém incomodo com esse berreiro descompassado.
— Também assim penso — ajuntou o carneiro. — Vamos ser vendidos, quer dizer, vamos mudar de dono. É tolice lamuriar dessa maneira por coisa tão sem importância.
O porquinho berrou ainda mais, e por fim explicou-se:
— É verdade, vamos ser vendidos os três. Mas tu, cabra, teu destino é dar leite; e tu, carneiro, tua função é produzir lã. Compreendo que seja indiferente para ambos que dês leite ou lã a este ou àquele. Mas eu, eu só presto para ser comido, e ir para o mercado não me é apenas mudar de dono mas mudar de mundo. Vou para o açougue, coim coim! Como então quereis que me conforme com a sorte e vá nesse sossego de cabra e nessa indiferença de carneiro? Tivésseis o meu destino e havíeis de berrar ainda mais forte…
E continuou a botar a boca no mundo.
Lembre-se disso quando lhe disserem que o seu esforço e comprometimento estão sendo reconhecidos e serão recompensados.
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