Esta história aconteceu há muito tempo atrás, no tempo em que eu ainda era programadora. Logo no início do projeto, houve uma reunião de levantamento de requisitos à qual comparecemos eu, a gerente do projeto e duas representantes da área usuária. Eu e a gerente do projeto, como trabalhávamos no mesmo andar, fomos juntas até a sala de reunião e lá nos encontramos com uma das representantes da área usuária, que nos disse que a outra estava um pouco atrasada mas já estava chegando. E assim, ficamos as três esperando e, claro, puxando assunto, já que isso foi antes da época em que todo mundo tinha Internet no celular para ter um pretexto para não falar com os outros.
"Esse barulho? Ah, é: tem umas outras pessoas aqui. É, elas estão comigo... eu acho." (Image courtesy of Ambro at FreeDigitalPhotos.net) |
Conversa vai, conversa vem, a representante da área usuária contou que tinha se mudado para o Rio recentemente, pois era de Natal e sempre tinha morado lá. Coincidentemente, tanto eu quanto a gerente do projeto tínhamos estado recentemente em Natal em nossas respectivas férias. Eu disse que tinha adorado a cidade, achado o povo muito acolhedor e simpático (achei mesmo) e a gerente do projeto concordou, dizendo que a cidade era linda, "cheia de gente bonita, nem parece...". E aí ela empacou. Claro. Como dizer, na cara de uma nordestina, que o povo da cidade dela é tão bonito que nem parece nordestino? Porque ficou óbvio, para todas as pessoas na sala, que era exatamente aquilo que ela ia dizer antes de se tocar e engasgar no meio da frase, com aquele ar de pânico de um paraquedista que acabou de perceber que, na pressa de sair de casa, pegou a mochila errada.
"É... Pessoal? Nenhum de vocês por acaso trouxe um para-quedas a mais que possa me emprestar, trouxe?" (By SKYDIVER1973 (Own work) [Public domain], via Wikimedia Commons) |
Se eu tivesse pensado em alguma forma de ajudar, juro que tinha ajudado. Mesmo sendo bem-feito ela estar naquele aperto pra aprender a não falar bobagem, ainda assim eu teria ajudado. Mas, convenhamos, como é que se conserta uma situação dessas? E mais: como é que se conserta uma situação dessas mantendo, ao mesmo tempo, uma distância segura, sem correr o risco de ficar também associada àquela gafe fenomenal? É como ver alguém levando um choque: você quer ajudar, mas não quer encostar na pessoa pra não levar choque também.
"Nem vem! Da próxima vez, pensa antes de abrir a boca." |
Enfim, o fato é que eu não consegui pensar em uma forma de salvar a situação, ela muito menos, e assim a frase ficou no ar, inacabada mesmo e causando aquele climão bonito na sala. E eu fiquei (e ainda fico) pensando nessas ideias de jerico que as pessoas têm e às quais são tão apegadas que, mesmo quando confrontadas com evidência em contrário, a sua reação não é dizer "Quem diria! Eu estava enganado a respeito dos membros desse grupo: nem todos têm essa característica!", e sim "Puxa, essa pessoa faz parte desse grupo, mas nem parece! Parece até que faz parte daquele outro grupo."
"Mas... você come hambúrguer! Tem certeza que você é japonesa?" (© Ryanking999 | Dreamstime.com - Woman Loves Hamburger Photo) |
A famigerada expressão "preto de alma branca" é um bom exemplo desse tipo de pensamento tosco. Outra muito usada por gente bem intencionada mas que não para pra pensar no que está dizendo é "ela é mais macho que muito homem", para se referir a uma mulher que é prática, determinada, não tem frescura. Pois essas, aparentemente, são características inerentemente masculinas, consequência da presença de um cromossomo Y e não de uma boa criação, auto-estima e caráter.
Dá pra entender alguém ter um conceito equivocado a respeito dos membros de um determinado sexo, religião, grupo étnico, nacionalidade, profissão etc se, durante toda sua vida, essa pessoa só conheceu membros desse grupo que se enquadravam nesse padrão. Quer dizer, dá pra entender mais ou menos, porque quem entende um mínimo de estatística (ou de bom senso) sabe que os doze advogados que você conheceu ao longo da sua vida não podem ser considerados uma amostra representativa dos mais de 120.000 advogados no estado do Rio de Janeiro, que dirá da classe como um todo. Sério, povo, para e faz as contas: se você conhece 12 advogados desonestos no estado do Rio, você não conhece nem 0,01% da categoria. Imagine comprar um pacote com 200 caixas de fósforo, o primeiro fósforo não acender e você jogar todas as 200 caixas fora. Pois é. É a mesma proporção.
"Infelizmente, este ano vamos ter que jogar fora toda a produção." "Por que?" "Aquele saco ali do fundo, tá vendo? Está estragado." (Image courtesy of Sailom at FreeDigitalPhotos.net) |
Não faz lá muito sentido, né? Mas ainda consegue fazer mais sentido do que considerar qualquer pessoa que não se encaixe no seu (pre)conceito não como uma exceção que prova que a regra não é assim tão universal e sim como um produto fora da especificação, um ser híbrido que pertence a um determinado grupo mas tem características de outro. E não enxergar (ou não querer enxergar, porque mudar de opinião dá um trabaaaalho!...) o quão ofensivo é você dizer a uma pessoa que as qualidades que ela tem, as tem apesar de ser nordestino / negro / mulher / <insira aqui o seu preconceito>. Isso, sim, é coisa não de homem, mulher, preto, branco, médico, argentino, paulista ou evangélico, e sim de gente meio ameba.
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